Processo Familiar
O "efeito Fachin" e as novas relações de poder, com a devida vênia
Nestes
últimos tempos, tenho observado as mais diversas manifestações com
relação à escolha do nome de Luiz Edson Fachin para o Supremo Tribunal
Federal. Adianto que o conheço pessoalmente, e a decisão em ocupar este
espaço para escrever a respeito de sua indicação se deu não sem passar
pela angústia própria às decisões éticas quanto à parcialidade versus imparcialidade.
Curiosamente,
um dilema muito próprio aos psicanalistas que, num exagero ético de
pretensão de neutralidade — nem a água o é — até o ato de cumprimentar
um paciente fora do consultório podia ser desconfortável. Conhecer o
paciente então, nem pensar. Estranhamente, acabamos por pretender ser
mais realistas que o rei, ou mais freudianos que o próprio Freud, que,
aliás, analisou vários de seus colaboradores e, até indevidamente, sua
própria filha.
Não à toa, Freud descreveu como profissões
“impossíveis” a de psicanalista, de educador, de político e, claro,
caberia acrescentar também a de magistrado. Profissões “impossíveis” por
exigirem um constante questionamento quanto à distinção entre a pessoa,
o cargo e a função. Profissões que são alvo das mais diversas
projeções.
E entre ires e vires de neutralidade, parcialidade e
imparcialidade, herdeiros de um exagero positivista, vamos tateando
nossos devidos lugares. Neste contexto, peço a devida vênia para falar
do efeito Fachin.
Vi desenhados vários Fachins nos veículos de
comunicação e nas redes sociais. Estas que representam uma virada e
horizontalização nas relações de poder que, como escreveu o filósofo
Michel Foucault, também acontecem de forma capilar. A possibilidade em
manifestar-se nas redes representa um caminho democrático, que também
pauta sua representatividade na liberdade do engajamento. A internet,
uma ágora a ser explorada, permite novas vozes nas instituições
formalmente constituídas pela delegação, também formal, do poder.
Ao
conceito do poder constituído pela subtração dos poderes individuais,
em que abrimos mão de uma parte de nossa liberdade e de nossa autonomia
para que um outro tenha poder, soma-se um poder que se fortalece nas
redes sociais e que, por sua vez, pode retroalimentar a delegação da
autoridade.
E, nessa linha, a ideia de que o direito e a liberdade
de um vão até onde começam o direito e a liberdade do outro pode ser
pensada também como: o direito e a liberdade de um começam onde começam o
direito e a liberdade do outro. Um lindo efeito multiplicador.
Porém, como fenômeno bem descrito por Freud em Psicologia das Massas e Análise do Ego,
por vezes no contexto dos grupos, como é o caso das redes sociais, as
barreiras advindas do superego — aquela lei interna que nos impõe
limites, a instância moral que nos pressiona quanto às escolhas éticas
que fazemos —, podem ser temporariamente removidas. E a falsa ideia de
anonimato anima manifestações em que podem imperar a ausência de
superego, em que a informação, a ética e a moral são deixados de lado.
Nesse contexto entram em campo, sem filtros, a ação e as emoções sem
controle, as antipatias, as simpatias e os preconceitos. Assim se dão
os fenômenos dos linchamentos e os espaços das redes sociais podem se
tornar antissociais.
Deixados de lado a boa-fé e os direitos
fundamentais, podem se multiplicar distorções, conscientes ou não. É
certo que no plano das subjetividades, despertando simpatias e
antipatias, há sempre algo da ordem da realidade. Assim, uma distorção
ou um delírio não constroem do nada. O comportamento de “desrazão” se
funda também em aspectos, em partes da realidade, que são tomadas como
se traduzissem o todo. Dessa forma é que vejo a distorção na utilização
de trechos da biografia de Fachin que tocam adesões políticas, e mesmo a
leitura por ele feita do manifesto de diversos juristas em apoio à
campanha presidencial em 2010.
Fachin, neste momento, tem ocupado
um lugar que os psicanalistas bem conhecem: o lugar da transferência.
Fenômeno descoberto por Freud, que obviamente não se dá somente nos
consultórios, mas em diferentes contextos, e no imaginário social. Não
só os psicanalistas, mas figuras de autoridade, e sobretudo as figuras
públicas são alvo das mais diversas projeções, de transferências,
algumas positivas, outras negativas, incluindo paixões, preconceitos,
idealizações que, em geral, mascaram ou impedem uma visão mais realista.
Há
líderes que têm clara a distinção entre a pessoa, o cargo e a função,
há outros que acreditam que encarnam o ideal neles projetado, deixando,
como se diz, o poder subir à cabeça.
E nos momentos de incerteza,
por natureza propícios às transferências, ganha ainda mais importância a
informação, numa dialética de esclarecimento. Só assim podemos diminuir
a avaliação subjetiva para, então, distinguir a pessoa e suas opções
pessoais, do cargo e da função. E, da mesma forma, só com informações
podemos verificar o quanto aquele a quem se delega o poder, distingue os
interesses e representatividade que lhe traz um cargo e o exercício da
função, dos interesses estritamente pessoais.
Vivemos tempos
interessantes, em que preconceitos demandam conceitos, em que a
antipatia e simpatia demandam a empatia. Tempos de pensamento em
sintonia com sentimento, tempos de razão com emoção. Tempos permeados de
incertezas e de dúvidas que, se metódicas, podem desconstruir certezas
moralizantes para, assim, construir o pensamento empático e a informação
utilizada de forma consciente e ética.
Com a devida vênia,
e tal qual uma nota de rodapé, acrescento e compartilho da experiência
pessoal/institucional que com Fachin tive. Conheci o simpático jurista
em 2000, em um Congresso na Austrália, da Sociedade Internacional de
Direito de Família (ISFL) que, honrada, integro como uma
vice-presidente. Tenho também a rara oportunidade de com ele integrar a
diretoria do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Um
convívio irmanado por ideais comuns, para os quais tomo as palavras de
sua obra, de 2003, Teoria Crítica do Direito Civil: “Queira
ainda o futuro reservar para o novo desenho jurídico do Direito de
Família e do Direito Civil brasileiro espaço para a realização do sonho
de uma sociedade justa, fraterna e igualitária”. Um convívio no qual,
digo de passagem, preferencias político-partidárias não integraram pauta
alguma de conversas, mesmo que informais.
O propósito sempre
esteve voltado ao Direito de Família, na discussão de ideias plurais,
num convívio cujo efeito posso recomendar. Dotado de admirável
capacidade em captar e sintetizar e harmonizar ideias, com toques de
raro humor e leveza de pensamento, traduzindo para a linguagem dos
direitos humanos, diferentes pontos de vista. Postura em que uma
preciosa combinação de generosidade, altruísmo e sabedoria, levam-me a
falar de um Fachin que transcende.
Do meu ponto de vista, de
imenso valor a epistemologia transdisciplinar que fundamenta suas
posições. Postura que também acredito transcender questões
político-partidárias, mas sempre com a sintonia política própria às
funções que o vi exercer. Cuida-se agora, na ágora, e no STF da função à qual sua trajetória acadêmica, profissional e institucional, e ética, que posso testemunhar, fazem jus.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-abr-26/processo-familiar-efeito-fachin-novas-relacoes-poder