Por Luiz Eduardo V. Berni em 18/12/2012 na edição 725
Fonte:http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed725_psicologia_religiao_e_direitos_humanos__onde_esta_o_limite
Nos últimos tempos, a mídia tem sido acometida por um boom de
informações relativas a um suposto preconceito religioso do Sistema
Conselhos de Psicologia contra uma psicóloga que, reportando-se ao
Artigo 5º da Constituição Federal, afirma “sofrer perseguição religiosa”
por parte de seu órgão de classe [LOBO, M. – Fala do Processo Ético –
CFP Perseguição Religiosa e Preconceito. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=CLMBMkk-xsMacessado
em 27/11/2012]. A psicóloga afirma que o CFP deu-lhe um prazo de quinze
dias para que ela tirasse de suas redes sociais “tudo que a ligue a
Deus”. A profissional afirma que se recusou a cumprir a determinação do
Conselho, assegurando que “dentro de seu consultório, nunca induziu
ninguém a convicções políticas, religiosas ou de orientação sexual”,
conforme preconiza o Código de Ética Profissional da categoria em seu
Artigo 2º, b, “Ao psicólogo é vedado induzir a convicção política,
filosófica, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a
qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções” [CFP –
Código de Ética Profissional do Psicólogo, disponível aqui,
acessado em 27/12/2012]. A profissional em suas redes sociais
apresenta-se como “psicóloga cristã”, suposto motivo que justificaria a
ação do CRP-08.
A laicidade do Estado
As polêmicas envolvendo a temática não terminam na questão apresentada
acima, ao contrário aprofundam-se, na verdade, a origem teria sido um
posicionamento assumido pela psicóloga, afirmando ser viável a “Cura
Gay”. Em matéria publicada no Portal Terra pode se ler a seguinte fala
atribuída à psicóloga “a retirada da homossexualidade da Classificação
Internacional de Doenças (CID) em 1990 foi por votação, o que indicaria
um caráter não científico da decisão. A ciência ainda não tem
entendimento do que é a homossexualidade. Não tem pesquisa que comprove
que a homossexualidade é genética” [TERRA, “Debate sobre 'cura gay' gera
polêmica na Câmara”, disponível aqui,
acessado em 27/11/2012]. Neste quesito o ponto assume proporções mais
profundas, pois se alia ao Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 234/11
do deputado João Campos (PSDB-GO), da Frente Parlamentar Evangélica, e
visa sustar a aplicação de dois dispositivos da Resolução CFP 1/99 que
“estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da
Orientação Sexual”. Especificamente, o que diz que “os psicólogos não
colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das
homossexualidades”, e outro que afirma “os psicólogos não se
pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de
comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais
existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer
desordem psíquica [BRASIL, Câmara dos Deputados Federais – “Projeto
susta resolução de psicólogos sobre preconceitos contra homossexuais”, disponível aqui,
acessado em 27/11/2012]. A questão já suscitou três audiências públicas
na Câmara dos Deputados em Brasília. A psicóloga que também que é
também “missionária e pregadora da palavra de Deus” [LOBO, M. “Carta
Aberta em resposta a Lanna Holder”, disponível aqui,
acessado em 27/11/2012, participou das três e afirma com clareza ser
capaz de distinguir seu papel profissional de sua atuação religiosa.
A despeito dos efeitos midiáticos que a questão teve para a psicóloga,
que tem estado em muitos espaços de exposição, o assunto traz, pelo
menos, três questões relevantes que precisam ser consideradas com
atenção. Primeiramente cabe abordar o assunto das profissões, no caso da
Psicologia, frente às pressões sofridas pelo fundamentalismo religioso,
das missões, sobre o fazer profissional. Depois, quais as relações
possíveis entre o conhecimento científico e o conhecimento
religioso/espiritual e por fim como ficam os Direitos Humanos nessas
relações.
As profissões regulamentadas no Brasil são geridas por autarquias
federais denominadas geralmente como “Conselhos”. A Psicologia que em
2012 comemorou seu cinquentenário, com uma grande “mostra de práticas”,
em sua maioria com grande adesão aos direitos humanos, é a maior
categoria profissional de psicólogos do mundo. Segundo dados do CFP o
Brasil conta com 210 mil psicólogos, enquanto nos EUA estes são
aproximadamente 130 mil, e na União Europeia, cerca de 90 mil. O papel
de um órgão de classe é prioritariamente o de orientar, fiscalizar e
disciplinar a profissão, de modo que os serviços profissionais
oferecidos à sociedade primem pela qualidade. A forma de gerir o fazer
profissional é sempre pautada pela ética, assim as diferentes categorias
discutem entre si os preceitos éticos de seu fazer profissional,
definindo um corpo normativo básico para a conduta profissional,
normalmente denominado de “Código de Ética Profissional”. Portanto,
trata-se de um processo democrático que envolve muitas instâncias de
discussão. Foi assim que os psicólogos ao longo de sua história
profissional na sociedade brasileira estabeleceram o código atual, o
terceiro de sua história, que é acessível a qualquer pessoa que consulte
os sites das 20 regiões que se articulam com o Conselho Federal.
Ao lado do Código de Ética existem as Resoluções que regulamentam a
ação profissional em campos que necessitam de um olhar mais acurado por
parte do parte dos profissionais, como é o caso daquele em que se
inserem as questões da sexualidade humana. Um campo que constitui tabu
em muitas sociedades, na nossa inclusive. Assim, depois de um longo
processo de discussão com a categoria e com a sociedade surgiu, em 1999,
a Resolução CFP 01, que se encontra amplamente lastreada na Declaração
Universal dos Direitos Humanos. A vida de uma resolução, sua revisão ou
revogação depende da configuração do campo ao qual ela se dirige. A
perenização da Resolução CFP 001/99 indica a necessidade de sua
manutenção, pois situações como as descritas nos parágrafos anteriores
ainda são muito frequentes.
No campo dos direitos humanos a laicidade do Estado e da Ciência assume
papel preponderante. É a inquestionável laicidade que garante que o
estado de direito preconizado no Artigo 5º da Constituição Federal,
possa ser exercido por todos. É a laicidade que sustenta a diversidade
religiosa, e que refreia tentativas fundamentalistas de dominação, como
muitas das propostas da Frente Parlamentar Evangélica. Assim, ações
organizadas pela religião frente ao Estado necessitam de constante
vigilância e a Psicologia tem um papel fundamental neste cenário.
Perigos do fundamentalismo religioso
O fundamentalismo religioso é, talvez, uma das maiores ameaças ao
estado de direito na contemporaneidade, como um resquício da constante e
milenar tensão entre política e a religião. O cerne do fundamentalismo
reside numa postura de “defesa da verdade religiosa contra o que é
percebido como perigos da Modernidade, como o caráter histórico e
subjetivo da fé, assim como pela aversão ao socialismo e a busca da
recuperação da base religiosa da sociedade” [FUNARI, P. P. VASCONCELLOS,
Pedro Lima: “Fundamentalismos. Matrizes, Presenças e Inquietações”. São
Paulo, Paulinas, 2008, ISBN 9788535623659. 130 pp. Revista de Estudos da Religião setembro / 2009 / pp. 124-126. Disponível aqui,
acessado em 28/11/2012]. Daí se justifica a existência de uma Frente
Parlamentar Evangélica. A rejeição de uma hermenêutica histórica leva a
uma exegese literal, ou seja, à compreensão interpretativa ipsis litteris
do texto sacro e, portanto, a uma negação do relativismo e do
pluralismo da cultura. No caso do cristianismo, no Brasil esse enfoque
recai muitas vezes sobre populações entendidas como em estado de pecado,
como os indígenas, os homossexuais e os adeptos de religiões de matriz
africana. Como foco secundário, mas não menos relevante, está que a
“espiritualização do corpo”, se opondo às religiões de matriz africanas
que, por exemplo, enfatizam “corporificação do espírito”.
Essa visão (r)estrita do texto religioso justifica as missões
religiosas e, consequentemente a existência do missionário, como a
psicóloga Marisa entende seu papel quando não está no consultório [LOBO,
M. “Carta Aberta em resposta a Lanna Holder”, disponível aqui,
acessado em 27/11/2012]. Todavia, apesar de afirmar competência em
distinguir seu papel missionário de seu papel profissional, seu discurso
mostra perigosa ambiguidade e pende para o fundamentalismo quando, por
exemplo, no programa Super Pop [Rede TV, programa Super Pop exibido em agosto de 2012. Disponível aqui,
acessado em 28/11/2012] afirmou compreender que “a homossexualidade não
seja doença, e que o psicólogo não pode obrigar um homossexual a
tratamento de algo que não é entendido como doença”. Entretanto,
momentos após fazer essa afirmação, a profissional se contradiz ao
afirmar “o fato da homossexualidade ser admitida como usual na sociedade
não a torna normal”. Asseverando como critério de normalidade a
“natureza biológica” reportando, também, a uma estatística de
aceitabilidade da ordem de 100% da população, ou seja, uma total falta
de compreensão de critérios de normalidade aceitos pela ciência. Além
disso, seu posicionamento nega a dimensão da cultura sobre a formação
das subjetividades e invalida as próprias raízes da ciência Psicológica
que ela representava naquele momento, que vão muito além da Biologia.
Assim se aproxima de forma flagrantemente de suas concepções
fundamentalistas, revelando, ainda, uma “homofobia cordial” [CASTRO,
Rosangela de Barros. Amor e ódio em relações homoeróticas. Dissertação
de Mestrado. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2007, apud MELO,
C.V.G, CASTRO, R. B., MIRANDA H. “As Relações Raciais e a Psicologia”. Disponível aqui, acessado em 28/11/2012] uma vez que a profissional afirma “amar os homossexuais”.
O fundamentalismo e a construção da subjetividade
O fundamento moral do discurso religioso pode mudar de acordo com o
momento psicológico das pessoas, ou de acordo com a exegese que se faça
do texto religioso. No já citado programa Super Pop, a psicóloga Marisa
Lobo, foi confrontada pela pastora da Igreja “Comunidade Cidade de
Refúgio”, e praticante da “teologia da Inclusão” Lanna Holder, cujo caso
pode ser emblemático para se entender a fugacidade do discurso
fundamentalista. Lanna se converteu evangélica aos 21 anos, depois de um
período de nove anos em que havia se assumido como homossexual,
inclusive vestindo-se como homem [Lanna Holder – “Testemunho de
Ex-lésbica”. Disponível aqui,
acessado em 28/111/2012]. Ao converter-se “crente” muda sua orientação
sexual para a heterossexualidade, casa, tem um filho e fervorosamente
prega uma fé fundamentalista contra os pecados da homossexualidade. Sua
pregação inflamada a converte numa liderança de expressão internacional
como “um milagre de Deus”. Com discurso envolvente, vai se firmando como
liderança de expressão. Entretanto seu projeto de conversão não logrou
sucesso, pois Lanna volta a assumir sua homossexualidade. Hoje, mais
madura, casada com a também pastora Rosana Rocha e em postura serena
afirma que “que no passado, pregou uma realidade que, na verdade não
vivia” [Rede TV!, programa Manhã Maior,
acessado em 28/11/2102]. Como Lanna, há relatos de outras pessoas,
pastoras ou não, que mudaram sua orientação sexual. Isto demonstra tanto
a existência do fenômeno, como também a variabilidade da sexualidade.
Todavia é extremamente necessário destacar que a mudança de orientação
sexual que pode ocorrer durante a vida não se dá de forma voluntária.
Bloqueio do diálogo entre psicologia e religião
É muito comum a partir da argumentação aqui levantada que “dá nome aos
bois” tomar-se a questão como pessoal. Esse não deve ser o caso, pois a
pessoas citadas estão na grande mídia, aliás, são apenas exemplos de
algo maior e que poucas vezes é abordado. Na verdade, em parte o
problema é reflexo de uma formação profissional deficitária, distante da
realidade social do Brasil, muito direcionada por perspectivas de uma
psicologia que se construiu na esteira de outras sociedades, como a
europeia e estadunidense. Formadas por instituição de ensino que visam o
lucro e dão pouca ênfase à pesquisa. Dos 396 cursos de Psicologia que
existem no Brasil, 211 são oferecidos por instituições que visam o lucro
e dão pouca ênfase à qualificação docente que, na maioria dos casos é
ainda horista e pode pouco se dedicar à pesquisa [LISBOA, F.S. e
BARBOSA, A. J. G. A formação em Psicologia no Brasil: Um perfil dos
cursos de formação. Psicologia Ciência e Profissão, 2009, 29 (4),
718-737. Disponível aqui,
acessado em 21/11/2012]. Os currículos dos cursos oferecem, em geral,
poucos elementos que ajudem os psicólogos em formação a entenderem a
diversidade religiosa e cultural do Brasil.
Isso, todavia está mudando, as novas DCN (2011) para cursos de
graduação em psicologia disponível no site da Associação Brasileira de
Ensino de Psicologia (ABEP) apresenta avanços para contextualização. As
novas diretrizes, assim como o Sistema Conselhos de Psicologia se
orientam por perspectivas psicossociais e encampam perspectivas
relevantes para a construção de uma psicologia que possa atender às
necessidades dos brasileiros e brasileiras, como de fato vêm ocorrendo
no Sistema Conselhos de Psicologia ao pautar e se posicionar em
temáticas que enfatizam a defesa dos Direitos Humanos.
Mas, se por um lado a psicologia deva se afastar do corpo doutrinário
da religião, sobretudo acautelando-se contra o fundamentalismo
dogmático, em momento algum nega à religião ou à espiritualidade sua
relevância na construção social. Os estudos sobre o coping
religioso ou espiritual [PANZINI, R.G. e BANDEIRA, D. R. Coping
Enfrentamento Religioso/Espiritual. Revista de Psiquiatria Clínica, Vol.
34, Suplemento 1, Edição Especial Espiritualidade e Saúde Mental, 2007.
Disponível aqui,
acessado em 28/11/2012], ou o enfrentamento de adversidades por meio da
religiosidade demonstram de maneira inequívoca o valor dessas crenças na
vida das pessoas. Porém uma coisa é a religião como estratégia de
enfrentamento local/pessoal, outra coisa é o dogma de uma religião ser
imposto à sociedade como forma de conduta, como propõe o PDC do deputado
evangélico.
O perigo representando pelas posturas fundamentalista em relação aos
avanços psicossociais faz com que o debate sobre a
espiritualidade/religiosidade avance pouco no Sistema Conselhos, pois
muitas pessoas têm medo de que, ao discutirem a temática possa haver
algum tipo de retrocesso no distanciamento crítico frente ao
fundamentalismo.
Ao mesmo tempo o diálogo aberto pelo sistema conselhos junto aos povos
indígenas do Brasil e a premência de discussão da Psicologia sobre as
Práticas Alternativas e Complementares, uma vez que há uma Política
Pública que as fomenta no SUS e, considerando que essas práticas trazem
em seu cerne racionalidades eivadas de espiritualidade, como a Medicina
Tradicional Chinesa-Acupuntura, permitida ao Psicólogo pela Resolução
CFP 05/02, além de outras práticas como as ligadas à Antroposofia que se
fundamentam no conhecimento teosófico, devem levar o sistema a vencer
seus medos e avançar na discussão.
Mas qual é o limite? Entendo que o limite está acima da religião e da
ciência. O limite para o diálogo da ciência psicológica com a
religiosidade/espiritualidade deve ser obrigatoriamente o dos Direitos
Humanos, que devem ser encarados numa perspectiva de construção
sócio-histórica permanente lastreada pela laicidade da ciência e do
Estado.
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